sexta-feira, março 18, 2011

Devaneios sobre a neblina

Parte 10.


Saiu da cama o mais rápido que pode, cambalendo para longe da gritaria terrível que tomara conta do seu inconsciente naquela bela manhã de sexta-feira. Como poderiam fazer doer tanto as sombras de um desastre que nem mesmo acontecera? Aquelas pessoas nem ao menos existiam, mas Manuela dera um jeito de achar seus equivalentes na vida real e trazer sentido àquele sonho maldito. É impressionante como o real e o impalpável se separam por uma simples escolha.

Ela não queria trazer o sonho para a vida, mas as nossas escolhas nem sempre vivem em lugares muito acessíveis a nossa vontade.

Lavar o rosto, tomar uma xícara de café, vestir uma roupa e aproveitar a bela sexta de folga para ir ao banco, yoga, salão, visitar a irmã. Parecia um bom plano para aquele dia que começara tão rarefeito se tornar o mais comum dos dias normais.

A maquiagem mal tirada da noite anterior formava uma espécie de sombra esfumaçada sob os olhos que lhe dava ares bastante dramáticos, até demais para aquela bela manhã carioca. Desejou morar em Berlim, ser uma francesa moradora de Berlim, se não tivesse largado o vício há quase 4 meses esse seria o momento ideal para acender um cigarro e produzir um auto-retrato do qual seus amigos se orgulhariam bastante e causaria um certo frisson na abertura da sua exposição dali a três semanas, mas já não era fumante, a câmera estava quebrada e, na verdade, se importava cada vez menos com a já tão desgastada exposição de auto-retratos. Se contentou em lavar o rosto, deixando livre de qualquer pigmento e oleosidade a alva pele que, apesar de seus bravos esforços, se recusava a imprimir os anos que passavam. Manuela tinha uma cara de menina que abrigava seus profundos olhos de senhora. Uma imagem bastante obliqua, que não cansava de confundir os desavisados.

A temperatura na sala estava pelo menos uns quinze graus acima da produzida pelo aparelho de ar condicionado do quarto e a umidade relativa do ar faria a festa de qualquer velhinho com graves problemas respiratórios ou crianças asmáticas, o clima ideal diriam as pessoas felizes, mas ela achava essa história de felicidade uma bobagem, ou, pelo menos, uma coisa bastante relativa e imaginou a mesma paisagem ensolarada trinta graus abaixo. A pele foi ressecando, as bochechas e o nariz corando pelo tentativa desesperada do seu sistema sanguíneo de mantê-los vivos e pulsantes, as pontas dos dedos se anestesiando, uma alegria fria! Quando o chão do comprido cômodo de paredes âmbar teve seu cimento queimado totalmente coberto pela branca neve gelada e seu corpo já não aguentava mais suportar tão baixas temperaturas vestindo apenas uma calcinha e camiseta, era hora de fazer café.

Como em uma tentativa desesperada de manter a rotina, ou de esquecê-la, Manuela colocava todos os dias comida no pote de Michel-Gondry, o bulldog francês, lembrando minutos depois que o cachorro ficara no apartamento antigo, com Felipe, no dia que decidiu ir embora. Ele gentilmente sugeriu que eles dividissem o cachorro, levou até o novo apartamento, potinhos, coleira, ração, binquedinhos… Mas ela nunca foi buscá-lo, não sentia saudades o suficiente. Quando se larga toda uma vida dificilmente será do cachorro que se sentirá falta e, honestamente, não sentia falta de nada. Também não via sentido em manter em casa outro ser que demandasse manutenção constante além dela própria. Mas, que seria bastante reconfortante ver o cachorro correndo ao ouvir o tilintar da comida na vasilha ao invés de mais uma vez ter a súbita surpresa matinal de que não tinha mais cachorro, nem marido, nem trabalho, nem tristeza e que pouco se iportava com tudo aquilo, isso seria.

Talvez fosse esse o objetivo de Felipe ao aparecer naquele fim de tarde de domingo com os adereços caninos e aquela proposta amigável, talvez ele só quisesse provocar nela a mesma sensação de mutilação que a separação nele provocara, por mais que fosse em frações, pequenos instantes todos os dias em que ela se lembrasse que estava só. Amanhã jogaria todas aquelas porcarias fora, era uma decisão concreta.

Acabara o pó de café, optou por água com gás e ameixas secas, nada que comeria se tivesse uma larga escala de opções, mas parecia mais apropriado para o horário do que azeitonas ou o pacote de Doritos que eram vizinhos das frutas com cara de idosas na geladeira.

Felipe estava usando a camisa listrada e a calça de linho creme que ela tanto gostava. Estava certa, naquele dia ele estava vestido para Guerra, preparado com as roupas e o perfume com toques de madeira e algodão que era o que ela mais gostava. Não era tão inofensivo quanto parecia, intenções vis moravam atrás daquele sorriso quase infantil. Não falaria mais com o ex, era uma decisão importante, caso ele insistisse ela simplesmente sorriria e permaneceria calada, atitude neutra. Ele demoraria um tempo, mas acabaria desistindo, ficaria preocupado achando que finalmente ela estaria enlouquecendo, quem sabe assim, ele finalmente desse atenção para a dentista meio bonitinha, bastante educada e previsível que há anos suspirava toda vez que ele passava. Aliás, essa era uma boa estratégia para lidar com o mundo de uma forma geral. A partir do momento que você convence a todos que não tem mais juízo, eles param de te cobrar qualquer tipo de coerência e finalmente te deixam em paz. Era algo a se testar.

11:15 no relógio do micro-ondas, a manhã avançava lentamente. Colocou um short jeans, prendeu os cabelos em um coque alto e saiu para passear com o cachorro.