Ela anda de um lado para o outro na comprida sala iluminada por dois abajures. Sente mais que qualquer outra coisa o frio do ladrilho hidráulico cor de terra que toca a única parte nua do seu corpo. Está frio, exageradamente frio para uma cidade sempre quente e úmida como o Rio de Janeiro, e isso a deixa feliz. Diz que se sente viva frente ao improvável mas, sabe que mesmo com os novos horizontes, tudo acontece e acontecerá da mesma forma como antes. Tenta não entristecer e põe uma música aleatória, é a quinta ou nona sinfonia de Beethoven, ela nunca sabe dizer qual é qual. A música traz ares excessivamente dramáticos a cena, transformando tudo aquilo em um grande momento cômico. Ela percebe o corpo derretendo pelo sofá em uma gargalhada incontrolável e solitária, mais solitária que incontrolável. Sabe que nunca dividirá um momento como aquele com mais alguém e ri ainda mais, ri do próprio ridículo. Ninguém nunca irá saber de verdade nada daquilo, nada verdadeiramente dela. São muitas as camadas entre aquele momento e qualquer outra pessoa. O relógio já avançara algumas boas horas no novo dia, não é hora de histeria, então prepara um chá que a invade lentamente junto com a fumaça, não a sua mas, do papel e do tabaco. Ela pensa na morte e sente alívio e repulsa ao mesmo tempo. Tanto a fazer. Mas, sempre assim, nesse lugar onde dia a dia se dissolve a barreira entre a vida e os sonhos. Esse, talvez seja um dos poucos momentos de lucidez dos últimos tempos. Não faz diferença, será invariavelmente, mais um ponto isolado a ser lembrado daqui a meses quem sabe, em um outro momento como aquele. O que ela estará fazendo enquanto preenche essa lacuna? Não se sabe. Já não sabe muita coisa, está se inebriando novamente. Em poucos minutos, apesar de seus esforços, a vida, em sua aura de sonho, virá tomar conta e ela não terá mais tempo ou paciência para estar entregue a nada daquilo. Termina sabendo que se um dia conseguir escrever sobre o amor, o fará na forma de pequenos contos.