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Uma vontade imensurável de algo que não se sabe. Angústia? Não. Apatia? Não. Ansiedade? Também não. Algo mais concreto, uma necessidade física, quase palpável, um anseio por liberdade, mas não daquele tipo comum, nada relacionado a espaços ou pessoas. Um desejo pelo despojamento total de tudo o que se pensa e, principalmente, do que se sente.
Manuela acordara assim. Com uma vontade imensa sem corpo ou nome, que engolia tudo, destituindo de sentido até os gestos mais cotidianos como levantar da cama ou beber um copo de suco de laranja. Não é que lhe faltasse força, pelo contrário, disposição era o que não faltava, mas já não conseguia encontrar razão para ser ou querer. Provavelmente era algo grave, as coisas não deveriam simplesmente perder o sentido assim, de uma hora para outra. Não era coerente, mas de qualquer forma, quando não se vê mais sentido o que primeiro se perde é a coerência.
Manu, 26 anos, cabelos castanhos, olhos azuis vibrantes, fotógrafa e jornalista por formação, por hora desempregada, adora perfume de limão na comida, mas não tem total consciência disso, prefere dias nublados e sente muita saudade da mãe.
Fez as contas, fazia exatos dois anos, três meses e vinte e oito dias desde que ela e Felipe decidiram morar juntos . Levavam uma vida feliz, bastante feliz. Gostavam das mesmas músicas, riam das centenas de piadas particulares que criaram ao longo dos útlimos anos e falavam, como falavam, se pareciam e eram grandes companheiros, todos notavam.
Felipe, , 29 anos, moreno, cabelos lisos e curtos, barba sempre por fazer, arquiteto, uma paixão infantil por cavalos e lego, há dois anos procura o lustre perfeito para iluminar a mesa de jantar na sala, botafoguense.
Era feriado, sete de setembro, dia da independência do Brasil, um dia engraçado, quase uma piada, isso já seria motivo para uma boa conversa matinal, falariam sobre o país, sobre as sequelas da nossa mambembe colonização, sobre o projeto de alfabetização social onde Manu era voluntária durante a faculdade, sobre a época que Felipe morara na Suíça e as maravilhas de se viver em uma sociedade civilizada, emendariam nos questionamentos sobre a falta de noção de limite da sua geração, beberiam café da nova máquina de café expresso que ganharam de presente de Ricardo, pai de Felipe, e terminariam jogados na sala enquanto ele leria a coluna de esportes e ela organizaria a coleção de CDs cultivada desde a pré adolescência.
Ricardo, 63 anos, cabelos cacheados e grisalhos precisando de corte, barba muito bem feita, predileção por camisas azuis, matemático pós doutorado, morador convicto de Santa Tereza, apaixonado por Carlos Gardel e pelas estrelas.
Mas, naquele dia não. Aquela conversa já não faria sentido, nem o café, nem os CDs e menos ainda Felipe. Diante daquela vontade imensa de algo que não se sabia, mas que a tudo se sobrepunha, tudo o que existira até então parecia pequeno, indigno de atenção diante da grandiosidade dos não acontecimentos.
... Continua.