sexta-feira, junho 24, 2011

Devaneios sobre neblina

Parte 26.

Já era tarde e os pés de Manuela doíam, estava bom por hoje, era o que eles e a cabeça latejante pediam deseperadamente. Entrou em uma rua de pedras arredondadas à sua direita, era um corredor de restaurantes, lojinhas e pousadas. Foi se deixando guiar pelo suave cheiro de caldo de peixe que saía de um simpático restaurante no fundo de uma pousadinha com vista para o mar. A vantagem de quando há muito não se come é que o sentido avassalador da fome não permite que se pense em mais nada. Naquele momento, tudo o que Manuela queria era o bom caldo de peixe seguido por graúdos camarões grelhados e umas batatas, sabia disso, como era bom ter certezas.

No longo corredor que levava até o salão do restaurante centenas de porta-retratos enfeitavam as gastas paredes vermelhas contando a história de pelo menos três décadas passadas. Eram fotos festivas de jantares, almoços e passeios de barco pelas praias da região. A figura mais constate era de um homem forte e sorridente, às vezes mais jovem de cabelos castanhos quase ruivos e em outras já grisalho com o semblante mais cansado, mas sempre muito altivo e com os profundos olhos pretos bastante acordados como os de um maestro que posa ao lado dos integrantes da sua pequena orquestra particular. Muitas vezes estava no meio de famílias que não pareciam ser suas e de amigos, muitos, que haviam se tornado próximos ao longo dos anos de constante visitação.

No fim do corredor desvendou-se um amplo salão decorado com móveis antigos e aleatórios que davam uma cara de casa ao colorido e aconchegante salão de jantar. Foi recebida pelo dono do restaurante, o mesmo senhor das fotos, agora alguns anos mais velho, um estrangeiro de sotaque irreconhecível, falava português com uma mistura de castelhano e alemão, aparentava ter sessenta e poucos anos, ostentava cheios cabelos brancos e uma barba crescida da mesma cor, a pele era de um bronze avermelhado, daqueles das peles muito brancas que passaram a vida expostas ao sol dos trópicos e carregam um bronzeado resignado de uma pele que desistiu de sofrer.

Rico, sessenta e oito anos, cabelos brancos, um dia castanhos, barba cheia e branca, profundos olhos negros sempre muito interessados, austríaco. Formado em direito, começou a rodar o mundo sem destino certo no início da juventude, vive no Brasil onde abriu uma pousada para acolher quem vive de passagem. Sente muita saudade da filha.

Ainda era cedo para o jantar e o restaurante estava completamente vazio, mesmo assim, Rico, depois de um breve cumprimento, conduziu-a até uma pequena mesa para duas pessoas encostada na grande janela com vista para o mar no fundo do salão. Aproveite o pôr do sol enquanto trago o cardápio, é uma maravilha nessa época do ano. Disse isso com tamanha propriedade e doçura que deixou Manuela sem alternativa senão seguir suas ordens.

quarta-feira, junho 08, 2011

Devaneios sobre neblina

Parte 16.

Existe sempre uma quantidade maior do que o confortável de espaços vazios dentro de mim. Foi o que Manuela pensou naquela plácida manhã de outono enquanto esperava o 157 que a levaria ao jardim zoológico para o passeio fotográfico que armara para o início do dia.

Era domingo, o trânsito estava tranquilo, a cidade respirava calma aproveitando o descanso da correria da semana que passara. Estava sozinha, mas mesmo que estivesse rodeada por dezenas, centenas, até milhares de pessoas, aquela solidão não se aplacaria. Vinha de dentro, da quantidade excessiva de ar que parecia caber nas suas entranhas.

Comprou uma Coca-Cola normal do menino mulato de olhos azuis que vendia refrigerantes e balas em uma barraquinha improvisada ao lado do ponto de ônibus, brasileiro típico, com cara de cidadão de qualquer lugar ou de lugar nenhum, recebeu seu pedido com um sorriso tão largo e sincero daqueles que só quem optou por viver plenamente, sem grandes questionamentos pode dar. Era pobre, de dinheiro, não poderia se permitir nutrir ares dentro de si, precisava seguir, e seguia, com a certeza feliz de quem não teve muitas escolhas.

Sentiu inveja do menino, sabia que ela, com todo o seu ar, jamais experimentaria a vida como ele. Não se apaixonaria, comeria, transaria, dormiria, viveria e morreria como ele, plenamente, entregue, como quem não precisa lembrar de se preocupar com si, porque não se tem, ou o contrário, se pertence em estado bruto, porque nada mais tem, porque tem as vísceras repletas de sangue e não de ar, de espaços vazios.

Quis falar, mas entendeu ser inútil. Ele não entenderia, talvez até se ofendesse, achasse ruim. Seus amigos, Manuela pensou, certamente não entenderiam. Como poderia uma menina rica, bem educada, que teve as melhores oportunidades que se pode ter, dizer que, talvez, preferiria ser pobre, de dinheiro, de nascença, de possibilidades. Pareceria, aos olhos dos outros, alienada e frívola, talvez o fosse.

Mas queria a liberdade, só por um instante, de não precisar ser tanto. Na verdade gostaria de poder ser nada.

Sentiu-se culpada.

Afastou-se do menino com o olhar baixo, como quem pede desculpas. Foi quando viu o ônibus, antes vermelho, agora cinza, , parado no sinal do outro lado da rua.