quarta-feira, junho 08, 2011

Devaneios sobre neblina

Parte 16.

Existe sempre uma quantidade maior do que o confortável de espaços vazios dentro de mim. Foi o que Manuela pensou naquela plácida manhã de outono enquanto esperava o 157 que a levaria ao jardim zoológico para o passeio fotográfico que armara para o início do dia.

Era domingo, o trânsito estava tranquilo, a cidade respirava calma aproveitando o descanso da correria da semana que passara. Estava sozinha, mas mesmo que estivesse rodeada por dezenas, centenas, até milhares de pessoas, aquela solidão não se aplacaria. Vinha de dentro, da quantidade excessiva de ar que parecia caber nas suas entranhas.

Comprou uma Coca-Cola normal do menino mulato de olhos azuis que vendia refrigerantes e balas em uma barraquinha improvisada ao lado do ponto de ônibus, brasileiro típico, com cara de cidadão de qualquer lugar ou de lugar nenhum, recebeu seu pedido com um sorriso tão largo e sincero daqueles que só quem optou por viver plenamente, sem grandes questionamentos pode dar. Era pobre, de dinheiro, não poderia se permitir nutrir ares dentro de si, precisava seguir, e seguia, com a certeza feliz de quem não teve muitas escolhas.

Sentiu inveja do menino, sabia que ela, com todo o seu ar, jamais experimentaria a vida como ele. Não se apaixonaria, comeria, transaria, dormiria, viveria e morreria como ele, plenamente, entregue, como quem não precisa lembrar de se preocupar com si, porque não se tem, ou o contrário, se pertence em estado bruto, porque nada mais tem, porque tem as vísceras repletas de sangue e não de ar, de espaços vazios.

Quis falar, mas entendeu ser inútil. Ele não entenderia, talvez até se ofendesse, achasse ruim. Seus amigos, Manuela pensou, certamente não entenderiam. Como poderia uma menina rica, bem educada, que teve as melhores oportunidades que se pode ter, dizer que, talvez, preferiria ser pobre, de dinheiro, de nascença, de possibilidades. Pareceria, aos olhos dos outros, alienada e frívola, talvez o fosse.

Mas queria a liberdade, só por um instante, de não precisar ser tanto. Na verdade gostaria de poder ser nada.

Sentiu-se culpada.

Afastou-se do menino com o olhar baixo, como quem pede desculpas. Foi quando viu o ônibus, antes vermelho, agora cinza, , parado no sinal do outro lado da rua.

5 comentários:

Thay disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Thay disse...

Fiquei um tempo na primeira frase.
Depois, como sempre acontece, vi cada cena. O menino pobre, o sorriso verdadeiro. Até o olhar.

Acho compreensível o que Manuela sentiu.

Você me disse que esse post é polêmico. Não acho. Mas daria uma boa discussão, ou conversa. Tem muito a ser dito à respeito da vontade de Manuela.

Saio daqui sempre querendo mais.

Você escreve lindo, Vi.
Cada vez melhor.
Um beijo.

Anônimo disse...

Também sinto vontade de poder ser nada. Mas passa.
A Manuela é incrível. Por assumir dentro de si sentimentos que normalmente fingimos não existir, por pura covardia.

Seus textos são incríveis.

Tangerine disse...

Tão bom de ler as coisas que você escreve.

Bruno disse...

Estou até agora pensando na felicidade que o menino tem e não sabe!